domingo, fevereiro 26, 2006

O Estranho Aparecimento do Sr. Shén Xian

Carlos Manel: «Eu vi tudo, Tudo. Com estes olhos ca terra há-de comer. Foi horrível, medonho mesmo. Só de me lembrar... e ainda nem passou um mês. Foi de manhãzinha, lembro-me bem disso porque a minha Josefa tinha acabado de me chamar para o pequeno-almoço, coitada, ela também viu, mas depois. Ora, eu bem que desconfiava que o homem devia de andar com problemas. Se conheço o senhor quê? Sr. Sheinho? Não. Mas a gente nota logo, olhe cá no sítio é todas as semanas, verdade. Bastou-me ir à rua por um instante e foi mesmo ali no meio da estrada, com toda a gente a ver, um homem saca da pistola e mata o outro. PUM!! Assim, sem mais nem menos. Sim, eram dois. O Homem ficou a escorrer sangue por todó lado, estendido no chão. O outro, fugiu que era um haver se ta vias. Foi um bruta assassínio, sem dúvida. Nunca mais me esquecerei...»

Sr. Dr. Fonseca: «Lamento muito, apesar de não conhecer o indivíduo em questão. O sucedido passou-se à uma semana atrás, quando eu estava a sair do hotel. Não houve qualquer assassínio. Eram exactamente 16h19m e o único indíviduo presente no hall da entrada era o próprio Sr. Shén Xian. Irremediavelmente empunhou a pistola colocando-a no parietal esquerdo puxando o gatilho. Fechei os olhos e apenas ouvi o estrondo. Foi deveras lamentável...»

Um louco: «Relembro-me no tempo de tal acontecimento. A tardinha ia já longe penetrando-lhe a noite. Perscrutei-o ontem num cais, aguardando. Estava só, mas uma sombra o seguia. Na derradeira hora ouvi um estalar forte, de fenda de luz que se abria no espaço, no tempo, por onde o ser caiu sem amparo. Restou-lhe a sombra negra que se dissipava aos poucos no confuso negrume incólome da noite. Vi, com esta visão que abarca o Universo.»

Encontrei hoje o Sr. Shén Xian, pareceu-me de bom aspecto, perguntei-lhe pela família e pelo trabalho. Estava cansado mas contente. Mandou cumprimentos para a minha.

Quem diria que o encontraria hoje?...

sábado, fevereiro 25, 2006

queda de outono

bebo demasiado da minha própria solidão
em cada canto que acordo
evaporado pelo sonho que outrora transpareceu
no espelho amachucado pelos insectos
que habitavam no meu rosto
ocasionalmente lúcido de amor

no silêncio de uma flor
sempre se escondeu a esperança nocturna
das aves que migravam de tempos a tempos
até a gélida percepção do outono
e da queda de todos os seus filhos
roubados pelo vento

a imagem do meu corpo reduz-se a cinzas
com o simples olhar das estações

Rui Alberto

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

da cadeira onde alguém se senta de costas para o mundo

(poema para Waiting Room for the Beyond, de John Register)


o regresso é sempre mais que o retorno
ou
pelo menos às vezes
parece

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O silêncio e a Palavra

É sem dúvida um excelente tema o abordado! Para mim, a problemática que ultrapassa a do pensamento expresso em palavra curso (dis+curso) é a própria concepção da forma "palavra" como expressão do pensamento em símbolo noção/língua (aquela passagem do não-ser como forma esculpida, para ser como forma esculpida e autónoma). Chegamos a pensar que o silêncio nunca está presente, parece ser aquele lugar inabitável, não porque não o desejássemos, porque o desejamos, mas essencialmente por ele não se conseguir prolongar no tempo e, no entanto a salvação encontra-se no silêncio, no ressoar do som mudo, da sensação absoluta sentida.
Mesmo quando nos julgamos em silêncio o pensamento não morre. Como cessá-lo sequer??
Apenas a poesia tem a força do silêncio sob o pensamento por momentos perenes.

sábado, fevereiro 18, 2006

(um homem, um país ou um pássaro)

A língua é pura e simplesmente fascista, diz Barthes. Porque obriga a dizer.
Calamo-nos, e neste instante o poder enunciativo é como um pássaro a quem os homens de bata branca se preparam para fundir a anilha que intermediada por uma corrente de ferro o une a um poleiro. E quando o soltam, quando se quebram as amarras, não é a revolução que cai sobre um homem, um país ou um pássaro. É apenas, pura e simplesmente, um retomar de. Do silêncio à fala e desta ao silêncio. Como um inquebrável e intransponível círculo de que nos rodeamos, como um inadiável desejo.

in poema em forma de nuvem