sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Eu atirava uma pedra

Lo profundo es el aire.
Jorge Guillén


Eu atirava uma pedra e depois tu outra e assim crianças ficávamos
eternamente crianças brincando na água daquele rio Dizem-me hoje
que jamais o azul o verde ou a prata como
os digo quando me perguntam que meninice a tua? e eu
sempre sorrio e sei que também tu sempre sorririas e
lhes digo daquele rio onde aprendíamos e serenamente
aprendíamos sem qualquer ciência a ser meninos
e sabíamos das coisas do amor
o amor em cada seixo redondo e luzidio
fazendo ricochete na água o amor quando rias e sorrias como só as crianças
e troçavas meu amor
quando e sempre me vencias na beleza do arco
e da elipse do seixo na água
o desenho do teu lançamento sempre mais belo do que o meu
a velocidade sempre mais grandiosa e redonda
a música sempre mais fina do que a de meu bruto e desajeitado lançamento
nunca fui um homem de perícias
E eu sorria enfim sorria vendo-te sorrir e troçar e celebrar a vitória e
a tua vitória também minha pois o incomparável gosto de te ouvir dizer
perdeste rapaz voltei a vencer as meninas ganham sempre
e eu sorria ferido talvez no pequeno orgulho de uma idade remota
eu sorria eu sempre sorria eu aprendia então em ti o amor
Gabava-me nesse tempo de teus olhos claros e de teus cabelos negros e
os outros rapazes rindo desse memorável dizer do lirismo nas canelas gastas
andávamos na mesma escola na mesma turma e sentavas-te junto do carlos
e todos os rapazes podiam olhar teus olhos e mesmo tocar teus cabelos
e podiam até roubar-te mais atenção que aquela que me dispensavas
um ou outro dizia-se teu namorado e eu negava
muito seguro muito adulto
todos eles riam quando assim falava de teu cabelo e de teus olhos
e tu ali brincando no recreio
todos eles riam mas eu sabia que apenas comigo jogavas seixos no rio
e era imensa a alegria que aí eu recolhia
Hoje dormes a meu lado e estamos mortos
ambos mortos repara nas pedras
o país que foi o nosso todos os dias mais longe
todos os dias morrendo mais um pouco e
já pouco poderemos fazer meu amor
resta-nos esta cama em que dormimos
e onde também as crianças vêm sempre acabar por adormecer
Temos pão e leite sobre a mesa
e tudo isso é suficiente

Eu atirava uma pedra e depois tu outra e
assim ficávamos esperando
e ainda por cá andamos e todos os dias velo um pouco mais
os teus olhos claros e os teus cabelos
talvez já menos negros
Estamos mortos, meu amor, estamos mortos
e assim juntos envelheceremos
com as crianças.
HMM

3 Comments:

Blogger blue said...

Fiquei presa a este texto e adorei cada palavra!
Lindas palavras de amor!
Adorei!
Parabéns!
*.*

6:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ora, muito obrigado pelas palavras Olga. Um prazer.

HMM

11:35 da tarde  
Blogger ana isabel said...

cada vez que escreves hipnotizas! os teus textos ganham vida e cada linha transforma-se num trilho que nos conduz!

8:57 da manhã  

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